sexta-feira, 10 de junho de 2011

Pedrinho


O pecado é realmente o único elemento colorido que subsiste na vida moderna.
OSCAR WILDE

"Pedro Prado era um homem difícil de tratar e mais quando fora o padre Pedro Prado. Nunca se imaginara naquela situação de esperar, todos os dias às quatro e meia da tarde, passar sob a sacada de sua varanda, uma bela mulher vinda, no início da coisa, não sabida de onde.
Com as expectativas aumentadas pelos olhares gélidos lançados para ele, todos os dias, não se demorou a perguntar para qualquer quem era ela e de onde vinha, para onde ia. E se lá chegava. Nem todas as suas perguntas foram respondidas, mas, meses depois, conseguiu descobrir o que quis: que ela era a cantora, Antuérpia B Tulipa, nascida naquela Portapilla estranha e desinteressante. Antuérpia, que lhe lançava olhares gélidos e gestos extremamente femininos, caminhando pela calçada e depois atravessando a rua Bento Carlos em direção ao ponto de ônibus da igreja de São Benedito. Ele  a via chegando e indo embora, vinda de lá e indo para muito longe dele."
"Aquele processo de encantamento demorou alguns dias, talvez muitos dias para ser reconhecido como tal pelo rato em que se transformara o ex-padre Pedro Prado, encantado que estava pela flauta mágica transmutada em aparição feminina, e todos os dias, sem se salvarem domingos, seus sábados e aqueles feriados nos quais ninguém trabalha. Lá estava sempre Antuérpia, miragem ou não miragem, aquela mulher sendo mais mulher a ir e vir dentro dos olhos e olhares do Pedro-em-espera."
"Muitos dias depois de vê-la passando pela primeira vez em sua calçada, Pedro experimentou a sensação de ser olhado sem a ressaca de um olhar cansado e socado pela exaustão dos dias que se repetiam processuais e fatídicos uns após outras vezes; lentas, intermináveis, decoradas... daí imperceptíveis. O olá dito de lá, em cima, quase nem escutado, quase nem respondido, fez de Pedro e Antuérpia os cumprimentantes aniversariados do centro da cidade, este algo que, sendo lá o que mais não pudesse ser além disto posto, cumprimentantes, e cumprimentaram-se assim, polida, reservada e felizmente durante muitos outros dias ensolarados ou chuvosos, neblinados, frios e quentes, tristes ou alegres, ocupados ou postos em vagabundice pela posição alcançada por ele, não por ela, como está dito. Fora um dia especial e determinante. Falaram-se, afinal! Ele estava obsedado pela idéia de comunicar-se com aquela aparição que não era. Não quis mais esperá-la lá de cima, e numa sexta-feira desceu para falar-lhe próximo e pessoalmente, sem a intervenção da altura que os separava. Ela passou e foi-se no ônibus dizendo antes que, para falar com ela, deveria ele jogar-se lá de cima, mas é lógico, sem coragem para isso, nós nunca conversaremos."
"Pedro olhou-a e apaixonou-se pela insensatez daquela bela mulher." 

II


"Dia daqueles ele se olhou no espelho e não conseguiu reconhecer a dureza que o consagrara. Estava velho e desinteressante para si e, provavelmente, a partir disso, para todos. Como encantaria Antuérpia se já não se encantava mais, se já não era mais o homem durão de sempre, capaz de tudo devido à fé inabalável, indestrutível, copiosa? Não se lembrava da primeira nem da última vez em que chorara, talvez por nunca mais ter chorado após reconhecer-se como homem. Pensava que era impossível esse reconhecimento; ei-lo menino num dia e homem no outro, para depois vacilar e comprometer-se com o tal aceito, mas não totalmente formado. Pedro escutava a voz do espelho."
"Dezesseis horas e vinte e cinco minutos de mais um dia daqueles. Ao longe despontavam as pessoas que sempre precediam àquela aparição que, dias após dias, tornava-se noutra coisa desesperante. Não que a inglória luta que travavam Antuérpia e Pedro, o fizesse fraco e desesperado. Não havia paixão; talvez não houvesse paixão, mas a necessidade de a espera esfumar, acabar-se, passar abrindo o dia que não começara e começar um outro que não acabaria. Antuérpia, fim e começo para Pedro, naquele dia atrasava-se em cinco minutos, e o coração considerado velho rebatia e não concordava, sofria. Pensou que se estivesse apaixonado, ao menos teria coragem de descer e procurá-la mais perto de onde vinha. Ele não sabia de onde ela vinha."
"Enfim a aparição. Toda vestida de vermelho vivo estava feia. Ele logo reparou naquela feiúra proposital. Sim, ela queria estar feia. Ela sabia que o vermelho lhe era desproporcional e contundente para os olhos de quem nela pusesse mais que atenção, mesmo que nem apaixonados, mesmo que nem necessitados, mesmo que distraídos pelas belezas do outro lado da rua. Pedro, lá do alto de sua sacada não deixou o coração disparar, somente rebater, socar-se, não disparar que aquilo não era dele, aquilo não estava nele para que outros pudessem saber. Não, Pedro Prado era homem difícil de saber, de reconhecer noutro, homem único, diferente, por quem ninguém jamais se apaixonara realmente. Pedro tinha a alma velha demais para acreditar no mundo, mais ainda para acreditar nas pessoas. Antuérpia era uma mulher inacreditável, sentimentalmente inacreditável. Pedro, lá de cima, atirou na direção dela o melhor olá que lhe ensinara o espelho; ela, com sua indiferença característica, expiou a intenção brusca e por demais masculina daquela tentativa. O olhar gélido, característico, talvez repugnante para outros homens, o enterneceu."
"Chovia pouco naquele dia, todos estavam apressados e Pedro não tivera outra coisa para fazer, a não ser esperar que Antuérpia lhe lançasse contra a barba mal feita, seu mais impiedoso e verdadeiro olhar. E como fora bom esperá-lo e recebê-lo."

III


"Dez anos se passaram, pouquíssimos dias foram diferentes desses narrados de forma tão sumária e sem a poesia vista pelos dois. Pedro, apesar de sua dureza quista como inata, via aqueles momentos com a candura que lhe proporcionava a imprecisão de sua masculinidade. Antuérpia, por sua vez, gélida e incorruptível, sentia-se como um perfume cinza que sempre fora visto como vermelho. Sem saber que Pedro olhava-se no espelho antes de vê-la todos os dias, ao chegar em sua casa ela sempre fazia o mesmo e dizia sorridente, dentes escovados, cabelos desalinhados e a lascívia a embargar a voz... perfumes não têm cor, sua boba!"
"Envelheceram muito pouco durante este tempo, obstante terem vivido muito. Envelheceu mais Antuérpia; ela vivera bem mais, conhecera coisas, aprendera e depreendera, mas nada construíra. Vivera a cada dia, acumulando tempo dentro de si, ou seja, experiência e nada mais. Gabava-se disto como quem come um doce sem saber se pode fazê-lo ou não e sem sentir as dores estomacais que a gula deveria ou não lhe causar. Sabendo-se assim desprovida de conhecimento algum poderia comer o doce, então. Não lhe faria mal. Não doeria o estômago."
"Pedro nada mais fizera a não ser esperá-la todos os dias; tinha feito tudo antes de conhecê-la, inclusive ganhar muito do dinheiro que o sustentava passivo diante as necessidades que todos os homens têm. Ele não, já fora até mesmo padre. O que mais deveria ser além de um bom observador? Nada. Ele era tão grande quanto ela e a repulsa que provocava em Antuérpia vinha daí, sem saberem, sem que vissem que esta pequena parte igualada de si os afastava e não permitia sequer a ousadia de ir além daquilo jamais quisto, nem mesmo por ele e sua masculinidade exacerbada: Pedro nunca quis relacionar-se com Antuérpia, de forma alguma, em nenhum nível. E não por que visse a repulsa dela, pois não via, nem sentia, apenas sabia que nada aconteceria, apesar de todo aquele magnetismo, pois já fora casado, tivera dois filhos legítimos, tendo feito amor uma única vez com a falecida."
"Durante dez anos ela passou por ali e o convidou a estar perto dela com seu olhar gélido e suas palavras debochadas. Jogue-se daí. Pule. Você não tem coragem pra voar? E ia-se embora. Ela. Seus dentes. Seu sem-sorriso. Ela e suas coisas todas muito bem apresentáveis e mal comportadas. Ela e seus convites para a morte. E Pedro pensava que ela não necessitava convidá-lo a morrer, todos morrem, muitos, milhões já haviam morrido antes deles, antes de Antuérpia querer inventar a morte alguém já o fizera. Porém, sua insistência haveria de dar em alguma coisa.
Dez anos. A idade de uma criança. Pedro nunca pensou que, se tivesse amado Antuérpia, poderiam ter uma criança com a idade aproximada da de seu neto, Pedrinho. Uma vida teria surgido de um encontro furtivo e delicado. Seria porém, criminosa esta delicadeza: ele teso e másculo, ela bonita e gelada como um olhar ressabiado, deitados numa cama com lençóis de cetim cinza, num quarto cinza, num dia cinza... seus olhares cinza cercados de coisas e sentimentos cinza. Nada aconteceria, nada sobreviveria a este encontro nublado, nada poderia nascer de uma relação sem cor, posto que para a vida dá-se a entender como primórdio as cores: somos feitos de cores, por vezes cores e sons, outras vezes cores, sons e sentimentos."
"Vencidos em um dia os dez anos completados, uma segunda-feira às dezesseis horas, Antuérpia vinha de lá fora de seu horário habitual. Encontravam-se na calçada em frente a casa de Pedro, sob a qual ele tinha uma loja de tintas muito grande, o próprio Pedro Prado e seu neto. Pedrinho vira a mulher que passava por ali todos os dias ainda longe deles, e disse ao avô despreocupado hei ho, senha que haviam combinado para qualquer coisa que fosse acontecer e na qual deviam prestar atenção. O moleque correra para a sacada. Sem entender, Pedro fora atrás paparicá-lo. O novo mostrou ao velho suas ambições vindo lá. É, o moleque gostava de ver Antuérpia chegar, provocar o velho, ouvir a resposta irritada e vê-la indo embora no ônibus. Quase dez anos tinha o garoto e já se vestia com as roupas do avô, dizia as palavras do avô, resmungava como um velho e olhava para aquela mulher com o mesmo entusiasmo e interesse do ex-padre. Naquele dia Pedrinho daria a resposta mau humorada a Antuérpia, sem nem mesmo receber o olhar que a todos provocava."
"_ Então, já criou coragem dentro das calças para pular e vir falar comigo de igual para igual?"
"_ Meu avô não tem idade pra isso, moça!"
"Antuérpia calou-se desejando que o moleque sumisse dali para que ela pudesse fazer o que sempre faria da forma que quisesse, mas o moleque não sumiu e disse mais. Os velhos não podem voar, só as crianças. E ela o viu pular sem que o avô pudesse fazer algo, além de tentar pegá-lo pelos pés postos no corrimão da grade da sacada, usado como trampolim pelo suicida. Ela atravessou a rua atordoada. Pedro desceu as escadas correndo, tropeçou, caiu, bateu a cabeça e desmaiou. Sentada no banco do ponto de ônibus, Antuérpia olhava o ajuntamento de pessoas em torno do corpinho ensangüentado do moleque, e sua vida passou pelos seus olhos como um filme."

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