sexta-feira, 20 de maio de 2011

A TERRÍVEL UDE B TULIPA


Ilidi, o rosto transtornado entre as mãos calejadas, e via pelos espaços entre os dedos não só o vermelhão sob o qual pisava, mas sua vida destruir-se ante o que teria de fazer, ou deixar que fizessem, uma vez que sua coragem, força e inteligência masculinas não suportavam o terrível fardo, a imensa empreitada a que era submetido pelo destino terrível e impiedoso. Ele teria de fazê-lo, ou deixar que o fizessem. Peremptória, Ude B Tulipa lhe surgiu à frente, ocupando toda a imagem que lhe restava daquilo que não fossem dedos ou vermelhão e tirou debaixo de si a bolsa com pertences agora, e então, alheios. Ilidi não via aqueles pertences como alheios, mas Ude os via como de pessoas estranhas e lhes entregaria com urgência, respeitando todas as regras que não só e simplesmente seguia, mas às quais pertencia e  lhes foram confiadas mesmo antes de existir. E naquele embate entre o que deveria ser feito imediata e irracionalmente e os desejos recônditos de um homem - que se rebelava mudo em sua inação gloriosa, revelou-se estreito o fato, ao menos para ele, de que tudo estava errado; ele inclusive, e suas coisas, e suas pessoas, e o mundo todo. Ude retirava debaixo de si a permissão para a ignomínia maior de sua vida. Permitindo-a, Ilidi não recusaria o ultraje de si. Ude, dura como a rocha sobre a qual o Messias construíra a casa da parábola, permanecia imóvel à sua frente esperando que ele, seu marido, voltasse a ser homem, e como nunca o fora, queria-o mais, queria que ele livrasse a família dela daquela maldição que não a deixava ser feliz e que a faria deixar de existir, pois seu sangue não correria mais nas veias de outras gerações. Antuérpia não seria mais sua filha, e Ilidi deveria conduzi-la para longe dali. Vendo que ele não tinha forças para ser homem, levantou-o com um único movimento, entregou-lhe a trouxa e o fez cavaleiro andante, ordenando-lhe com os olhos."
Ilidi não obedeceu prontamente. Reteve-se ante um pouco de espelho que para nada servia, dependurado na quase parede daquilo que não mais seria um lar. Uma névoa invisível de tristeza, uma nesga mal cheirosa de emoção desconhecida e um homem e seus não-sonhos esfacelados habitavam imensamente aquela razão, aquela certeza inefável, aquela dor pútrida refletida naquele vidro espedaçado."
O ódio é inerente e proveniente do Homem; uma paixão, algo natural, mas ele não reconhecia tal tentáculo do Mal dentro de si a remexer sentimentos caros e transtornados. Ilidi buscava-se no poço seco de seu ser e tudo o que achava era sua filhinha perdida num mundo mentiroso, inexistente, descontínuo, ininteligível para quem não fosse letrado e diplomado pelas escolas da Traição, da Falsidade, do Orgulho Pequeno, que não é aquele orgulho que faz uma pessoa de bem inflar o peito e dizer. Dizer seja o que for. Mas o orgulho que diminui a pessoa à vizinhança da mesquinharia e da arrogância e simpatia. Ilidi odiava a simpatia das pessoas de São Carlos e Araraquara, as cidades vizinhas de Portapilla e possíveis destinos do desamparo futuro de sua filha. Antuérpia iria para lá, levada por Catarina, um pouco mais velha, mas mesmo assim totalmente despreparada para cuidar da prima."
Ude olhava-o desconfiada de que ele não faria. O propósito de seus olhos, mãos e coração fez o marido levantar-se e imitá-lo. Pois bem, Ilidi estava em pé e chamou a filha. Ia explicando a ela o que se passava, quando foi bruscamente interrompido pela esposa, que gritou, impedindo que Ilidi descumprisse a regra: __ Aponte! Ele a olhou estupefato. __ Aponte! Aponte, agora mesmo, não nos condene a mais... ela é o suficiente! E retirou-se. Voltaria somente quando estivesse tudo terminado, crendo que sua autoridade faria o valor da ordem: impagável. E foi assim. Antuérpia viu o pai apontar-lhe a trouxa e, olhando a trouxa, viu que lágrimas debruçavam-se e sumiam nela. Catarina fez menção de tomá-la, mas Ilidi apontou outra, os olhos tão intensos, empertigados e molhados transformados em labaredas que matariam aquela Ude B Tulipa infernal não fossem as ordens dela tão necessárias quanto corretas, corretas posto que necessárias, mas absurdas e Ilidi perdeu-se no desprazer de existir e abraçou-as com tamanha força que as fez arfar assim que as soltou, e apontou novamente. Agora apontava a rua, a estrada, a rodovia. Saiu de dentro do casebre no qual poria fogo não fosse aquilo a confirmação submissa de que Ude era realmente um ser bestial, que nascera para arruinar sua vida. Catarina vira aquela cena uma vez na vida, e começou a coordenar as frases desconexas ditas pelo dedo em riste do tio tornado, desafortunadamente, padrasto, tirano, algoz, ignóbil."
Tomou da mão da prima e puxou-a, calando-lhe com os solavancos de sua mãozinha tão frouxa e débil. Ao chegarem à rodovia Washington Luís, Ilidi usou três segundos de sua desconhecida mediunidade e apontou em direção a São Carlos, já que não suportava os habitantes de Araraquara. Os são-carlenses, acreditava ele, mesmo sendo uns imbecis assoberbados, poderiam dar algum tipo de guarida à sua filha. Reconheceu, entretanto, que o cumprimento daquela estúpida tradição era mais imbecil e insuportável que os moradores de São Carlos."
Deu-lhes as costas como tantos outros o fizeram e com menos dor em seus corações despreocupados. Estes cumpriam o que lhes ordenavam as leis de seu lugarejo e de seu povo, mesmo que não constituíssem um. Ilidi obedecia cega e tristemente à sua esposa, a terrível Ude B Tulipa."

ROGÉRIO LOPES

Um comentário:

elly disse...

Oi parabéns pelo seu blog
ja estou te seguindo me segue tbm
bjs
www.coisasdeladdy.com