quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O avental

Pela manhã, ao chegar à casa dos Bach, Maricleide ajustava com esmero seu avental em torno da cintura quando ouviu passos lentos, quase sonolentos, de alguém que se aproximava. Estranhou que alguém estivesse acordado tão cedo em época de férias escolares. Pelo que se lembrava, Bach retornaria às aulas dali a uma semana e seu costume, desde alguns anos, ao menos durante o recesso de fim de ano, era o de trocar o dia pela noite. Portanto, acreditou que fossem Primer ou Lavínia caídos da cama por falta de sono, algo difícil de acontecer-lhes. Bom dia, boa noite, por favor, com licença e outras demonstrações de educação e polidez entre os Bach eram mecanicamente ditos, por isso ela não se incomodou por não ter sido cumprimentada, acreditando que não ouvira o que lhe disseram e retribuiu mecanicamente o desejo de que seu dia fosse bom na graça de Deus, não é mesmo seu Primer? O senhor deve ter tido uma noite de sono profundo, está até remoçado. Esse cabelo curtinho fica muito bom para o senhor. Olhando melhor viu que não era Primer, mas seu filho e sorriram: ela pela confusão, ele triste quase bege. Não queria parecer-se com seu pai; nem fisicamente como lhe estava sendo imposto naquele instante. Porém, sempre há algo de ordem no caos e Danilo admitiu que aquela mulher via em si um homem surgindo e fez perguntas ao vento, querendo incomodá-la de alguma forma. Feitas ao vento, Maricleide não pôde entendê-las e respondeu a todas da maneira mais franca, abrindo o cofre de suas razões. Bar entendeu que ela era mais uma admiradora incondicional de seu pai, igualada em desejos recônditos e idolatria às outras frequentadoras do Templo de Primer.
Sentando-se para esperar o café, que demoraria ao menos dez minutos, teve tempo e ângulo para observá-la insignificante e atraente ao mesmo tempo. Lembrava-se da audácia de ter deixado o próprio quarto durante a noite, enquanto seus pais se atacavam mutuamente, para invadir o quarto de Catarina e Antuérpia. Organizando seu modo de pensar, calculou que, para seduzir as duas, era necessário nada, para seduzir aquela ali à sua frente era preciso quase nada. E foi o que tentou fazer.
Quando Lavínia e Primer acordaram, o dia ia alto com o sol brilhando entre nuvens esparsas, que anunciavam chuvas que não viriam. A baixa umidade relativa do ar impunha a Primer certos cuidados com sua renite alérgica, por isso chegou à copa pingando soro fisiológico numa das narinas, e o que viu foi seu filho conversando desanimadamente com Maricleide, e estranhou. Servido o café assim que todas as mulheres se reuniram à mesa, Maricleide retirou-se para cuidar de seus afazeres. Primer disse a todos que ficaria em casa, coordenando algumas obras pelo telefone e e-mail, queria que seus assistentes assumissem definitivamente os cargos a que foram confiados, que era hora de terem mais responsabilidade com as obras do templo para que pudessem realizar um trabalho mais abrangente na comunidade, dando mais visibilidade às suas propostas. Dizia tudo isso com entusiasmo, esperando que Bar o interrompesse como sempre, intempestivo, desmesurado, dizendo coisas e coisas a respeito da fé e das obras sociais do templo, muitas delas, como a cura dos homossexuais, propostas por ele. Mas o que Primer ouviu de Bar era preocupante, ao menos para um pai que se vê diante de um concorrente. Danilo lhe disse que ele não soubera formar sua equipe e o melhor que faria era ele mesmo acompanhar o andamento dos trabalhos. Incompetências somadas geram prejuízos irremediáveis. Primer quis dizer alguma coisa, mas foi interrompido bruscamente. Você não está vendo o que está acontecendo dentro da sua própria casa?, e olhava para Lavínia. E você, conversou com os engenheiros como eu lhe pedi?, olhe para os nossos rostos, veja se alguém teve uma noite confortável! Lavínia, surpresa com o filho só pôde olhar, desconcertada, em seu redor. Viu o sorriso pequeno de Catarina, a indiferença de Antuérpia, a perplexidade de Primer e, sobretudo, que Maricleide vestira seu avental do lado avesso e, corrigindo-a apenas para não ficar quieta e derrotada, fez enrubescer o rosto moreno de sua secretária.

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