quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Nicola, o oxítono.

À força de advogadices, Nicola e sua fama oxítona estiveram presos  por, somente, um curto espaço de tempo. Sua liberdade precoce, que também durou muito pouco, o sucesso estrondoso de seu primeiro livro de autoajuda e sua personalidade megalomaníaca transformaram-se em ingredientes de uma mistura explosiva.
Sem ter para onde ir, voltou para sua casa, para dividir o mesmo espaço e viver sob o mesmo teto com sua esposa. Não que não tivesse dinheiro para hospedar-se em um hotel, ou amigos que quisessem lhe dar suporte, evitando assim o inevitável. Aquele e estes lhe sobravam graúdos no alforje de segredos, criados e permanecidos, de uma vida inteira de relações tão sólidas quanto escusas. Mas não admitia que a esposa estivesse lá se apropriando de seus bens, suas histórias, personalidade e técnicas de criação literária. Voltava para assumir seu posto de único escritor daquela casa; também para reaver a posse do direito de escrever a biografia de Antuérpia, e fazer dela mais um best-seller.
Escritor preciso que era Nicola não precisou de mais do que os primeiros vinte dias na cadeia para construir seu livrinho de psicologia positiva e enviá-lo a Fiódor, seu editor e amigo de longa data. Mesmo tendo sofrido um ataque terrorista de sua própria esposa, que rasgara boa parte do que já havia escrito, conseguiu contar com a memória e valer-se positivamente das conseqüências daquela insânia feminina. Calcando-se no juízo de vítima de uma vida repleta de regras, costumes e pontualidades, personificou a imagem de uma corda, que o puxara para o buraco da reclusão, na mulher. Inocente, porém recluso, ensinava a outros injustiçados a manterem-se firmes no propósito de conseguirem a liberdade, através de argumentos que fizessem a todos verem suas provas incontestes e irremediáveis de inculpabilidade. As cordas que os tivessem jogado no lodo da desconfiança alheia, eram os principais meios de salvação e UMA LUA NO FIM DO TÚNEL lhes ensinaria como alcançá-las e usá-las. O autor, no entanto, não dava àqueles encarcerados uma sugestão didática e razoável de como conseguiriam, presos, adquirir tal manual de soltura. Nicola leu esta falha nas entrelinhas de sua obra, mas preferiu ignorá-la solenemente, confiando na estupidez daqueles que se valem de tal literatura.
Estivera preso por cinquenta e três dias, mas esperaria o julgamento em liberdade. A expectativa de soltura e a distância que guardaria de lugar tão sórdido como o Marrom Glacê 1 foram suficientes para lhe mudarem a expressão do rosto __ de cansada e vencida para uma fisionomia de herói, de cujas fortalezas inexpugnáveis de seus atos nada seria capaz de escapar. Avisado apenas quarenta e oito horas antes, sofreu com a espera, mas remoçou o semblante mesmo assim. As idéias simples, ordinárias mesmo, invadiam sua existência encarcerada e o transformavam em nada mais do que um simplório à espera de algo pequeno, mas que parece enorme. Pensava no que poderia comer, e não comia; onde voltaria a dormir, assistir televisão, acordar cedo e ter o que fazer. As outras idéias ligadas à grandiosidade arrebatada de seu ser esplêndido foram recuperadas no justo momento em que recebeu seus pertences de volta. Com eles vinham sensações de reintegração de posse de direitos usurpados, sensações que o fizeram dizer coisas e coisas maledicentes, no que foi contido rapidamente pelo advogado e amigo que o fora buscar. Livrou-se do inconveniente, que o mandava calar-se, para poder aproveitar sua liberdade reconquistada em toda sua amplitude e profundidade.
Antes de voltar para casa, esteve em uma livraria localizada na principal avenida do centro da cidade e comprou o próprio livro que escrevera, pensando em mostrá-lo para a quase ex-esposa. Certamente ela não o lera, desprezando seu sucesso editorial inconteste. Em apenas oito dias UMA LUA NO FIM DO TÚNEL vendera quase quatro mil e quinhentas cópias. A procura fora impulsionada pelos escândalos envolvendo o autor e a estratégia incisiva de divulgação adotada pela editora. Nicola não queria saber se as pessoas compravam seu livro pensando nos fatos que extrínsecos à qualidade do texto e conseqüente geração do tal e propalado prazer estético, apenas gabava-se de si para si que vendia como água. Para isso fora feito; a avaliação dos leitores era um problema da editora, não dele.
Preocupou a mocinha que o atendeu ao não querer tocar o livro embrulhado em papel impresso com a logomarca da livraria, pedindo que fossem colocados, o livro e o merchandising, em uma sacola plástica. Pegando-a com cuidado, fez a menina sentir-se mal com a cena e virar o rosto para outro lado, desdenhando aquele zelo desnecessário e pondo parte da língua para fora da boca, no que foi imediatamente advertida pela gerente do estabelecimento, que reconheceu Nicola, sem ousar o porém de pedir-lhe um autógrafo ou entrevista inconveniente, posto que, apesar de famoso escritor, também ex-presidiário.
Olhava a sacolinha plástica com nojo e cuidado. Retinha com a ponta dos dedos como fazem aqueles a segurarem fralda suja; deixando claro a todos que  aquilo não lhe era de maneira alguma agradável. Fazia-o com o braço a quarenta e cinco graus distanciado do tronco, o que lhe dava um aspecto extremado de um feminino sem charme e ridículo. Atravessou rapidamente a Avenida São Carlos, pouco movimentada naquele momento, e sentou-se em um dos bancos de ferro do ponto de ônibus da praça coronel Sales. Perguntando para quem reparara nele aqueles gestos todos a que horas conseguiria tomar um ônibus que passasse pela Santa Casa, ouviu que esse aí, o Santa Felícia passa lá, aliás, ônibus pra Santa Casa, num sabe?, tem de acordo. É Santa Felícia, é Santa Paula, Jockey Club, Romeu Tortorelli, o próprio Santa Casa. É muito mal feita as linha, num sabe?, o senhor concorda? Prum lado, um monte de linha, de outro, nada, só de vez em quando e Nicola viu-se salvo daquele falastrão ao entrar no ônibus. Cumprimentou-o de dentro do veículo abanando a mão frouxa e dando-lhe um sorriso de sua graça amarelo-bege.
Sentando-se no banco empoeirado, evitou encostar-se à lateral interna, permanecendo mais ou menos no meio do assento, o que foi impossível fazê-lo por todo o trajeto. Uma senhora enorme e muito distraída quase lhe esmagou a existência e as vontades ao esquecer-se de que ali sob si mesma poderia estar uma pessoa. Recuando quase esmoído para a lateral, puxou para bem perto de si a sacolinha plástica com o livro dentro, olhando quase com susto e raiva para a mulher, que sequer dignou-se a cumprimentá-lo, apresentando-lhe somente a autoridade de seu peso. Tantos bancos vazios e esse elefante vem justamente em cima de mim, sentar essa bunda disforme por cima da minha perna. Eu devo ter jogado muitas pedras na cruz. Não acredito que eu tenha feito tanto mal às pessoas com quem vivi para ter de pagar todos os meus pecados em um trajeto de dez ou doze quarteirões. Já não me chega ter de segurar esta lembrança colada ao meu corpo, e ainda tenho de suportar o peso e o cheiro desta pipa.
A fragilidade de Nicola sentiu-se acomodada ao levantarem-se do banco a gorda e sua distração. Viu sob si aquele homenzinho e pediu-lhe desculpas, talvez por abandonar-me, deve estar pensando que gostei de ser quase triturado, morfética! fedorenta! gorda infernal!
Nicola já ia longe de onde deveria ter descido do ônibus quando se deu conta de que pusera junto do peito o embrulho que comprara na livraria. Afastou-o, deixando-o dependurado dentro da sacolinha plástica presa pelo pulso, entre as pernas entreabertas, sem poder livrar-se das lembranças que o acometeram. Mesmo virando o rosto para o vidro e olhando para fora, não era capaz de saber que passara do ponto; encontrava-se proibido novamente, presa abatida pelo trauma de ter vivido situações inesquecivelmente ruins e destruidoras. Lembrava-se de sua captura; do barulho das grades se fechando atrás de si na cela; de seu transporte em camburão até a cadeia; da primeira refeição que recebera do carcereiro a quem tinha de dar dinheiro para poder comer chocolate. E na confusão que se formou em sua mente, lembrou-se profunda e longamente da esposa flertando com o carcereiro bem à sua frente, enquanto ele, Nicola, algemado nada podia fazer. Lembrou-se também da única entrevista que concedera encarcerado. Negociada por Fiódor, seu editor, serviu apenas para divulgação do livrinho mal escrito. Por isso não foram feitas mais do que dez perguntas e em nenhuma delas referiu-se o motivo que o levara para a prisão. Rapidamente esquecida esta passagem, que nem alegre, nem triste, sua fisionomia transida por aquela angústia que só pensamentos ruins geram, denunciou novamente que sentia algo imensamente doloroso. A esposa, rasgando as folhas de sulfite nas quais ele escrevera as mais belas frases de sua história, rasgava também o contrato que Nicola assinara com a vida. Buscara aquelas frases com o ardor sublimado de um amor impossibilitado de existir pela falta de espaço em corações humanos, mas que não deixa de existir posta sua inexistência em paradoxo ou mesmo ressequido e odioso conflito. O riso mudo da nova loucura da esposa o assombrou por cinquenta dias, e tornava a mortificá-lo dentro de um ônibus que passeante pelo subúrbio de uma província.
Herói de e para si mesmo, Nicola ajoelhado no chão da cela que o prendia, pediu que Deus aparecesse, não sem antes jejuar por dois dias, para forçar-Lhe a presença quase imposta naquele contrato que não passava de barganha. Não agüentando mais de fome, comeu o primeiro alimento que viu. Sentindo-o estragado em seu estômago frágil e desacostumado a exercícios tão radicais quanto aos ordenados pela fome capitã de agruras, passou mal sentindo dores e náuseas terríveis, e pensou que fosse morrer. Gritou mudo que Deus aparecesse e o que aconteceu por pouco não mudou seu modo de pensar na vida e nas pessoas.
O que lhe aconteceu não só beira a escatologia: mergulha e chafurda em sua imundície imagética. Não é de bom tom artístico narrar o que se deu com Nicola na prisão e o fez escrever, instantâneo, o livrinho que o castigava estando tão próximo de si, naqueles momentos em que um ônibus o conduzia para dentro de sua existência tão irrisória quanto descabida. Mas o próprio Nicola não é uma personagem que possa ser respeitada. Pequeno idiota, machista convicto, capitalista selvagem, o perfeito escroto merece ser achincalhado pela narração ignominiosa de seus encontros ridículos com as divindades que criou para salvar-se. É bem verdade que seus deuses, nascidos de seus pedidos desesperados, eram poderosos e lhe conferiam ao menos sorte. Mas aquele deus, tão onisciente quanto o Verdadeiro, por quem chamou antes de correr para o vaso sanitário, sentiu-se traído pelo nojo que Nicola sentiria do presente que lhe fora pedido. Sentado no vaso sanitário, expulsando de dentro de si aquilo que não seria sua pior parte, pedia que Deus o ajudasse a livrar-se daquela situação e que aparecesse para ele, confirmando Sua existência. Deus não se fez de rogado e enviou seu filho para salvar aquela criatura arrependida. Desdobrando o papel higiênico com o qual se limpara, Nicola teve a surpresa de ver desenhado em merda e cheiro de merda o rosto do filho de Deus, e acreditou que o pedido que fizera criara aquela que, em outras circunstâncias, seria uma fina estampa. Porém, acreditou posteriormente que Ele zombava de sua situação e mandara um sinal de Sua existência de forma codificada. Não satisfeito, aliás, desfeita sua vaidade pela zombaria, chamou-O novamente, pedindo que o ajudasse e que não Se risse de sua situação. Transtornado pela sua megalomania e o estragado do alimento que comera, o cérebro de Nicola criou outra miragem. Após ver o rosto de Jesus na merda que ficara no papel com o qual limpara o cu, viu a imagem da Virgem no vômito que espalhou pela cela.
Arrebatado pelas provas incontestes de que Deus realmente existe, Nicola tornou-se escritor novamente e compôs UMA LUA NO FIM DO TÚNEL, seu primeiro livrinho de autoajuda. Vítima de inspiração divina, Nicola escreveu tudo aquilo que um estúpido à beira da falência pessoal quer ler; tudo aquilo que esse mesmo estúpido já sabe, mas que, por causa do vício e da força das modas literárias atuais, precisa buscar, no culto à personalidade de um charlatão, um guru que o salvará da derrocada infalível.
No ponto final, nos altos de Santa Felícia, ao lado do clube da Polícia Militar, estando muito longe de onde deveria ter descido, Nicola foi, com uma frase muito simples, abruptamente retirado de seus devaneios mais parecidos com pesadelos. O senhor passou do ponto. Nicola sabia que sim. Indagado se sabia onde estava, confirmou que não. Solicitado a descer e esperar o horário de partida para o retorno no ponto de ônibus da calçada do outro lado da rua, disse o bordão preferiria não fazê-lo,  calando a réplica do cobrador, que reconheceu naquele tempo verbal o imperativo e o condicional que atavam Nicola àquele banco. Assustado por reconhecer nele o homem que matara o próprio filho, o motorista ordenou com um olhar que o jovem deixasse o assassino ali mesmo, evitando atritos e mesmo a polícia.
1apelido da cadeia pública de São Carlos

Nenhum comentário: