quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Rap nacional prova que periferia enxerga muito melhor que centro

Emicida

O ano começou com um disco vigoroso de Kanye West, sujeito que há poucos dias lançou, desta vez em dupla com Jay-Z, outro trabalho - Watch the Throne - que alguns ansiosos já declararam como álbum do ano depois de escutar apenas uma-nota-maestro. Justifica-se: juntos, Kanye West e Jay-Z estão para a música pop nos Estados Unidos assim como Batman e Super-Homem estão para a Liga da Justiça. De fato, o disco ganha muito com o impacto sonoro dos dois. Enquanto isso, nas salas de casas bem distantes do cenário de carros conversíveis, mulheres-objeto e joias pesadas no pescoço, o paulistano Emicida jogou dia desses na internet, "de grátis", seu novo EP: Doozicadabra e a Revolução Silenciosa.
Ciente que todos os nomes acima citados dividem espaço na playlist de muita gente, é curioso observar como o gênero musical do rap esclarece tanto sobre a bipolaridade e, quem sabe, certa esquizofrenia de um mundo desenhado por centros e periferias. Não seria arriscado dizer assim que o hip hop, das várias formas como ele se manifesta hoje, é uma aula de história das civilizações. Porque enquanto Emicida, Criolo, MC Rashid, Projota e vários outros novos rimadores do rap nacional vivem e cantam uma periferia em crescente riqueza de ideias, o que Jay-Z, Kanye West e companhia fazem hoje é emular uma riqueza cada vez mais estranhamente eurocêntrica.
Emicida: "Gente louca faz música. Gente séria, explosivo"
Para sustentar tal absurdo, nada mais adequado ao gênero que um back-to-back. Em outras palavras, vamos colocar o conteúdo de Watch the Throne lado a lado daquele cantado em Doozicabraba e a Revolução Silenciosa.
Antes, um breve "intro": Em uma cena do documentário Família Braz - Dois Tempos, vencedor este ano do festival É Tudo Verdade, um dos membros da dita família observa de longe o horizonte perfurado da cidade de São Paulo e diz que, apesar de já ter dinheiro para tanto, nunca toparia morar no centro da capital. Prefere seguir a vida na periferia. "Ali, vou ser mais um. Aqui, sou mais um analisando eles". A justificativa dá um nó na lógica eurocentrista que nos foi ensinada, ainda cedo na escola, de que é o centro quem analisa, estuda e determina o que lhe cerca. Tendo, aliás, exclusiva legitimidade para se proclamar centro.
Jay-Z
Isso dito, é possível afirmar que Kanye West e Jay-Z, assim como tantos outros milionários rappers americanos (Diddy, 50 Cent e Eminem na lista), foram muito cedo passear no centro e de lá não mais saíram. Ainda que para todos os efeitos eles reclamem em sua música a dor e a ira de ter passado e, mais importante, superado a tragédia iminente que sua vidas poderiam ter sido.
Kanye West (ao fundo), enquanto Jay-Z canta
Afrika Bambaataa
Hoje, apesar de musicalmente e tecnicamente serem geniais nas suas bases orgânicas e inorgânicas (instrumentais e digitais), eles estancaram o disco no mesmo tema: uma pretensa ironia da ostentação de ter muito dinheiro sendo negro na América - no caso do branco Emimen, a coisa é um pouco mais complexa. Assista a 10 clipes dos tops de linha do hip hop nos Estados Unidos e dá para entender rápido do que estamos falando: muitos carros, muitas mulheres (aqui sinônimos para prostitutas) e, inxalá, muito ouro. Imagens que ficam voltando em loop. A lembrar que toda essa cena cintilante nasceu lá no fim dos anos 70 no Bronx, periferia fosca de Nova York, onde a discotecagem de Kool Herc, Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa reascendeu a autoestima da comunidade negra americana com festas, sobretudo, felizes.
No Brasil, o ainda jovem Emicida e, bem antes dele, Racionais MCs, Pavilhão 9, Câmbio Negro, Faces do Subúrbio, Thayde e tantos outros nunca conseguiram alcançar as estatísticas bilionárias da indústria do hip hop americano. E para a saúde mental das ideias rimadas no português brasileiro, dá para dizer: ainda bem que não.
Isso porque o rap, braço musical da santíssima trindade do hip hop*, é por natureza um gênero inclinado para autobiografias (mesmo as inventadas), e portanto reflete sempre o olhar crítico de quem analisa a si próprio e, a partir daí, analisa os outros. Tal como o personagem lá da Família Braz que prefere a Brasilândia à Av. Paulista.
Direto então ao back-to-back.
De um lado, o CD Watch the Throne
13 dólares na Amazon, deluxe edition. 15 músicas. Das 14 cujas letras foram disponibilizadas, 13 falam de ostentação de dinheiro, 6 têm mensagens claramente misóginas e 2 mencionam uma certa ingratidão da comunidade negra diante daqueles (o próprio Jay-Z e Kanye West) que deveriam ser seus heróis. Em tempo: a única faixa que não menciona que os artistas são milionários e nadam em champanhe se chama New Day, em que ambos os rappers prometem nunca dar aos seus filhos aquilo que eles aprenderam a ser: egocêntricos e misóginos, com possibilidades até de criar um menino republicano, "para que todo mundo saiba que ele ama os brancos". Aliás, ambos falam sobre o futuro de seus ainda não nascidos filhos homens. Para as meninas eles devem ter outros planos.
Kanye West, mais até que Jay-Z, é um sábio provocador, rapaz de educação refinada, cheio de referências artísticas e bastante ciente de como usá-las. Jay-Z teve uma infância mais dura, mas como rei do pedaço (casado com a rainha Beyoncé), ele se mostra um dos empresários mais espertos do mercado de entretenimento. Ambos usam a música como uma pretensão de mensagem para aquilo que é confeccionado somente como meio. Este meio, a indústria, que resgata a ideia de gueto apenas para justificar uma certa justiça social quando eles se mostram opulentos. Uma indústria que ainda reivindica para si o direito de ser ela também preconceituosa, só que neste caso com as mulheres. E essa é uma lógica e uma mensagem tão branca e europeia quanto as grifes que eles vestem - e cantam que vestem.
Do outro lado, o EP Doozicabraba e a Revolução Silenciosa
5 reais em pré-venda no site do artista. 8 faixas. Todas partem do mesmo lugar: a periferia de São Paulo. Todas também mandam a mensagem desse "maloqueiro com louvor", cara firmeza e, acima de tudo, trabalhador. A mensagem de superação, assim como no rap americano, existe. Mas ela não se sustenta em cordões de ouro e bebidas caras. O sacode a poeira e dá a volta por cima do rap nacional é todo concentrado na ideia da labuta, do trabalho: "Vocês só vêem anéis, nós temos calos nas mãos".
Os temas não poderiam deixar de refletir a realidade de uma periferia que é tão distinta quanto igual a várias outras do País. Se fala de jovens que morrem cedo, de futebol e, claro, de tráfico. Mas não o tráfico de drogas, e sim o de informações, este cada vez mais ausente no centro. Preocupado apenas em contar, e no caso de alguns artistas americanos, cantar sua riqueza, este centro vai perdendo campo de visão. Ou ainda nas palavras de Emicida: "Se o Justus partisse daqui teria desistido e nós não".
*O termo Hip Hop dá conta de todo o movimento que reúne o rap (música), o break (dança) e o grafite (artes visuais)
Para assistir e entender melhor: além do citado Família Braz - Dois Tempos, é recomendado procurar pelo filme Bróder, de Jefferson De, com trilha de Emicida.

CAROL ALMEIDA para o Jornal do Brasil

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